Resenha do livro: Coisas de médicos, poetas, doidos e afins..



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               Como resenhar um livro de contos sem contar as histórias? Diferentemente de um romance, contos são desconexos entre si, guardando apenas uma tênue semelhança, um leve fio condutor, que neste caso é o fato da autora ser ao mesmo tempo escritora e médica. Por isso esse coisas de doidos – se os doidos são os poetas, assim chamados pela sua estranha resistência em se render ao mecanicismo e ao cinismo da vida capitalista, fica a critério do leitor decidir que este ato de resistência é necessário. O que será do planeta quando tudo for lucro? Quando apenas os animais e plantas comestíveis puderem viver? Que será da humanidade em noites sem lua? É preciso mesmo que todo mundo tenha em si um pouco de poeta e de doido para lutar pela direito à natureza, à beleza, às coisas simples que tornam este planetinha azul tão especial. Como diz o ditado, de médico todos temos um pouco, quem nunca fez uma chazinho de qualquer coisa para aliviar uma dor? Eu volta e meia me divirto quando as pessoas a meu redor começam a trocar receitas para aquela dor assim, assim até que alguém me pergunta o que eu acho. Eu? Acho que você deveria consultar um médico. Faz-se um silêncio constrangido. Ah, nós esquecemos que você é médica! Sim, tome o seu chazinho de maracujá e depois corra ao médico, para saber o que há por trás daquela dor de cabeça que, pelo que sei, pode ser um tumor cerebral até que tomografia me diga o contrário. Sim, médicos são pessimistas. Nós sempre procuramos primeiro pelo mais trágico, pelo pior, pelo mais perigoso, para poder tratar bem no início enquanto há tempo. E ficamos tão felizes quando nada encontramos! O paciente sai todo bravo, olha o doutor aí, me fez fazer tantos exames para dizer que não tenho nada grave. Que bom! É muito triste para aquele um entre mil que tinha a doença grave pesquisada. Este sai também todo triste, e a família vai sair dizendo ou que se salvou graças a Deus e ou que morreu por causa do médico. Coisas da profissão.

    Este livro de contos seleciona os melhores contos do tema, escritos durante 35 anos de prática médica. Alguns foram colhidos nas filas, como Farmácia Popular e Aguarde na fila. Fila, como diz a autora em um de seus contos, é excelente lugar para sociólogos escreverem teses de doutorado, pelas conversas surreais que aí podem ser colhidas sem o menor pudor, já que as pessoas falam para o mundo mesmo.
                    “Talvez – esta é a esperança feminina – dentro de algum espécime masculino haja ternuras escondidas, à espera da mulher que ouse levantar a tampa desta caixa de Pandora que é o cérebro masculino.”         Assim raciocina uma das personagens do livro, que trata fundamentalmente das relações entre pessoas, sejam pacientes, parentes, amigos ou até mesmo fantasmas. Pois há um fantasma em um desses contos, um bem conhecido do folclore da cidade de Santos, dos médicos em particular. Leia, pois é um dos contos mais interessantes;
            Médicos não acreditam em fantasmas? Médicos são racionais e lógicos? Assim era o doutor Hélio até que se deparou com... um milagre? Seja o que for que aconteceu, o mistério nunca foi esclarecido e o doutor Hélio passou a acreditar na conhecida máxima “há mais mistérios no céu e na terra do que sonha nossa cotidiana medicina”.
              Do lado dos pacientes temos alguns depoimentos comoventes (modificados os nomes, idades e detalhes pessoais para que as personagens inspiradas não revelem as pessoas verdadeiras que lhe serviram de modelo). Casos que nos fazem pensar no quanto a força de vontade ajuda a superar problemas tão graves como o uso de drogas. Ou como a simplicidade cega de tal forma um operário que ele não consegue perceber que possui os recursos para seu tratamento no convênio médico da própria empresa...até que o médico o alerta para o óbvio.

              Se eu tivesse visto é um conto que foi publicado primeiramente em uma revista do laboratório Novartis, no início de minha carreira, no século passado. Foi muito gratificante, na época, ver um conto meu na mesinha da sala de espera de vários colegas. Em minha vida profissional, infelizmente, vi-me algumas vezes em frente a uma faca ou revólver, situação que não desejo a ninguém. A vida do profissional de saúde, do médico em particular, é cheia desses episódios tensos, perigosos, sofridos, e escrever sobre isso, transformar a situação de terror em texto, é catártico; quando a gente consegue finalmente rir do acontecido, está renovado e pronto para outra. (de preferência outra situação melhor)
                  Há toques de humor. Do trapaceiro azarado em Azar de principiante ao padre hipócrita em Presente da vida, a autora permite-se imaginar toda sorte de sofisma através dos quais certos indivíduos pretendem fazer valer seus princípios pouco éticos ou atividades francamente criminosas.
           Não poderia faltar o lado político, suavizado pelos animais que aparecem na sala de atendimento do Dr. Rodrigo , pediatra surpreendido pela sabedoria de uma criança. A história O voto é uma apologia que nos convida a refletir sobre todo o processo eleitoral, que peca pela base. Como escolher se a escolha não existe? Leia o conto e reflita nos mecanismos políticos que atualmente afligem mais do que contemplam nossa sociedade.
            Enfim, eles estão aí, entregues para o mundo.

            Boa leitura.

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